José Carlos Mota
Um laboratório de experimentação de novas formas de construir cidades e comunidades
Neste sentido, para que a natureza experimental do programa resulte, é fundamental garantir o envolvimento das equipas políticas e técnicas municipais nestes processos para os valorizarem como laboratórios de construção de novas políticas públicas urbanas
O período pandémico que se atravessa tornou claras as fragilidades sociais, económicas e ambientais das cidades e agravou as condições de vida de muitas famílias, com perdas de rendimentos e de acesso a bens e serviços essenciais, como a saúde ou a educação. Ao mesmo tempo, mostrou um espírito de entreajuda e de solidariedade, sobretudo nos territórios que ainda cuidam da escala de vizinhança, em particular nos bairros, e animou circuitos curtos de produção e consumo, com menor pegada ambiental e maior impacto na economia local (ver exemplo do município da Maia).
O urbanismo pós-covid também tem vindo a sublinhar a importância da dimensão de proximidade em resposta ao desejo de uma cidade socialmente mais justa e ambientalmente mais equilibrada. Nestes último meses ganharam particular destaque a «cidade de 15 minutos» que Anne Hidalgo e Carlos Moreno estão a ensaiar em Paris e as «superquadras de Barcelona» propostas por Salvador Rueda. Na mesma linha, a Trienal de Arquitetura de Oslo do próximo ano lançou como mote «Mission Neighborhood – (Re)forming communities». Desafia a organizar laboratórios abertos para investigar diferentes maneiras de preparar os bairros para os desafios do futuro, nomeadamente quanto às suas características desejáveis, infraestruturas de suporte às relações de vizinhança, formas de uso de instalações coletivas para acolher usos e utilizadores mais diversos, contributos para a saúde pública e o desenvolvimento social sustentável e incremento de práticas democráticas.
Curiosamente, algumas destas ideias de um urbanismo de proximidade não são inovadoras. Há cem anos, Clarence Perry, um sociólogo norte americano da Escola de Chicago, cunhou a referência «unidade de vizinhança», uma célula urbana de 65 hectares na qual podiam residir 5 a 6 mil pessoas e que deveria conter a escola primária (elemento nuclear à volta do qual se organizam os espaços residenciais), o parque infantil e o comércio local, como forma de promover os princípios de cooperação e de associação. Era um meio de proteger a vida dos bairros e os principais destinos das famílias sem necessidade de cruzar as grandes vias que no início do século XX ameaçavam rasgar as principais cidades.
Cinquenta anos depois dessa data, Nuno Portas lançava a experiência do Serviço Ambulatório de Apoio Local, um programa que oferecia «a oportunidade de as populações gerirem de forma organizada (e assistida por técnicos qualificados) a construção de cada novo bairro que iria substituir os “bairros de lata”, as “ilhas” ou outras formas de precariedade em que estavam a viver». Para além de uma resposta às necessidades habitacionais, tratava-se de um «exercício de formação cívica e de capacitação dos cidadãos para contribuírem para o projeto, a construção e a manutenção dos seus bairros».
É neste feliz alinhamento que surgiu o Programa «Bairros Saudáveis», lançado em 2020 pelo governo, com a finalidade «de dinamizar parcerias e intervenções locais de promoção da saúde e da qualidade de vida das comunidades territoriais, através do apoio a projetos apresentados por associações, coletividades, organizações não governamentais, movimentos cívicos e organizações de moradores, em colaboração com as autarquias e as autoridades de saúde».
Inspirada no trabalho do Programa BIP ZIP, um programa que dinamiza projetos colaborativos de experimentação de novas práticas comunitárias e políticas públicas, esta iniciativa recebeu 774 candidaturas, tendo sido aprovadas 232, com o envolvimento de quase 1.500 entidades. Infelizmente, muitas propostas com classificação elevada não tiveram apoio financeiro, o que motivou várias tomadas de posição pública pelo reforço orçamental do programa.
Há uma grande expectativa nos resultados deste programa face aos ambiciosos objetivos («promover iniciativas de desenvolvimento local e de capacitação das comunidades locais …», «viabilizar intervenções céleres e eficazes que criem comunidades mais resilientes, inclusivas e saudáveis…», «promover o desenho e a gestão participados na construção e requalificação de espaços públicos e/ou comuns mais seguros, inclusivos e saudáveis….» e «eliminar barreiras ou fatores de discriminação…»), à experiencia e qualidade da equipa coordenadora e às metodologias propostas pelos proponentes. Contudo, importa lembrar que este programa se dirige a territórios, bairros ou zonas sensíveis que concentram vários problemas - «condições de habitabilidade deficientes ou precárias», «moradores com rendimentos baixos ou muito baixos», «pessoas de risco em caso de covid-19», «pessoas com constrangimentos de acesso a cuidados de saúde», «crianças e jovens em idade escolar a não frequentar a escola ou com elevada percentagem de insucesso» e «pessoas em situação de exclusão social, isolamento ou abandono» - e cada proponente dispõe de meios financeiros e humanos limitados, o que recomenda que seja olhado como uma oportunidade de experimentar novas respostas para os problemas delicados em presença.
Neste sentido, para que a natureza experimental do programa resulte, é fundamental garantir o envolvimento das equipas políticas e técnicas municipais nestes processos para os valorizarem como laboratórios de construção de novas políticas públicas urbanas. Acontece que neste programa os municípios não estão numa posição de liderança, em alguns casos surgem enquanto entidade parceira e noutros não se envolveram. Esta circunstância pode levá-los a distanciarem-se ou a não se comprometerem com os resultados.
O programa Bairros Saudáveis tem todos os ingredientes para se afirmar como um laboratório de experimentação de novas formas de construir cidades e comunidades. Surge num momento crucial de impulso de novas políticas públicas urbanas a nível europeu, acontece em resultado de experiências participativas bem-sucedidas e ocorre em resposta a uma enorme mobilização cívica e institucional. Mas para isso, tem de se garantir uma excecional capacidade de articulação de esforços, saberes e atores e uma exemplar prática de acompanhamento e monitorização. Saibamos todos estar à altura deste desafio.