
Luís Mendes
Onde pára o direito à habitação? O lugar dos territórios informais nas políticas de habitação em tempos de covid*
O período da Covid19 tem exposto as contradições e desigualdades de um modelo de recuperação económica e de produção de habitação da última década no pós-crise capitalista 2008-2009 muito assente nos pilares do investimento estrangeiro e da financeirização das dinâmicas do imobiliário e da turistificação do território, gerando um crescimento rápido, mas de pouca sustentabilidade ambiental, social e económica. A recuperação económica fez-se com base num modelo de habitação neoliberal, rentista, extractivista e predatório que gerou inúmeros fenómenos de acumulação por despossessão, desenvolvendo as dinâmicas do imobiliário e do mercado residencial crescentemente polarizado e menosprezando as necessidades dos grupos mais vulneráveis, quer no centro como na periferia das grandes cidades, continuamente relegados para último plano e votados à exclusão territorial.
Estas assimetrias socio espaciais, que sempre marcaram o nosso território, saem reforçadas de um período de urbanismo austeritário vivido entre 2009 e 2019. Ora, o período pandémico, e a crise urbana, social e económica que aquele tem estado a alimentar, evidencia ainda mais estas linhas de clivagem entre os grupos sociais no que se refere ao acesso à habitação condigna, ao direito ao lugar, ao direito ao habitat, enfim, ao direito à cidade. Falamos dos mais idosos, dos imigrantes, dos sem-abrigo, da comunidade cigana, das mulheres, a cuja vulnerabilidade residencial e privações no mercado formal de habitação se acrescentam ainda, frequentemente, o estigma social e o facto de serem alvo de práticas de preconceito, racismo, xenofobia e misoginia.
A situação de autêntico Estado de Exceção que se viveu em Portugal em virtude da expansão da pandemia Covid19 e do acionamento do estado de emergência com a obrigatoriedade de isolamento social e quarentena, bem como as limitações à liberdade de circulação e de atividades económicas, acirraram a discussão em torno do direito à habitação em Portugal. No que toca a este direito, a ineficácia de garantir a aplicação das medidas de prevenção, como manter a higiene pessoal e garantir distanciamento e isolamento social, mostrou como a pandemia veio expor de forma dramática as contradições do modelo de produção capitalista de cidade e de habitação do pre-covid. Como lavar as mãos se não há sequer sabão e acesso doméstico a água? Como pensar em isolamento social em casas sobrelotadas? Como fazer confinamento e quarentena se não se tem casa? Os coletivos e associações de defesa do direito à habitação souberam capitalizá-lo como direito humano pela dificuldade de acesso à habitação em condições de habitabilidade digna e que permitem o isolamento requerido pelas autoridades políticas de saúde, catapultando este assunto para o topo da agenda social e política. Multiplicaram-se os protestos digitais, campanhas, abaixo-assinados, petições ou até ofícios e memorandos dirigidos às autoridades políticas com responsabilidade na matéria.
Ultimamente, a resposta das políticas públicas e da democracia representativa face a estas problemáticas multidimensionais complexas e inerentes ao direito à habitação tem, por conseguinte, sido revigorada. E na mesma linha, diversas instituições públicas visam responder positivamente aos reptos de alerta lançados pela sociedade civil organizada. Procura-se, de forma resistente e resiliente, denunciar práticas de segregação residencial e/ou encontrar alternativas inclusivas, ainda que continuem a persistir contradições muito profundas entre o discurso político e as práticas efetivas. Estas respostas têm que ser rapidamente executadas e operacionalizadas mediante a urgência que a resolução da crise de habitação exige, especialmente, nos grupos e territórios mais vulneráveis.
Uma situação de emergência global, como a que atravessamos, obriga os Governos a mobilizar recursos para capacitarem a resposta das autoridades de saúde e pôr em prática planos de recuperação económica e de proteção social excecional que protejam os cidadãos mais frágeis dos impactos da crise provocada pela pandemia. Isso permitiu que agora em tempos de pandemia Covid19, a resposta do governo, do sistema partidário e da democracia representativa se fizesse com sentido de urgência, tendo, desde logo, suspendido os despejos e avançado com medidas temporárias e extraordinárias de garantir o direito à casa, ao abrigo, que permitam o confinamento em período de confinamento.
A Assembleia da República acolheu com aprovação e com sentido de urgência algumas das propostas feitas, e o consenso do plenário levou a que o Senhor Presidente da República acabasse de promulgar no dia 19 de Março a Lei 1-A/2020 “Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” onde se determina que sejam suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega do imóvel arrendado, quando o arrendatário possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria. Depois desta data, todas estas medidas extraordinárias, que tinham prazo inicial até junho, acabaram por ser estendidas até setembro, e com o prolongamento da pandemia e surgimento de uma segunda vaga pandémica mais intensa nos meses de outubro e novembro; novamente as medidas foram estendidas até ao fim do corrente ano.
Por outro lado, foi criado um regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários, que determina que até à cessação das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica Covid19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública, ficassem suspensas as denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional (comercial e associativo) efetuadas pelo senhorio e a execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente.
Todas estas medidas temporárias e de exceção, e os sucessivos prolongamentos, foram muito importantes para uma larga camada da população residente no território nacional neste período pandémico, mas dirigem-se ao mercado formal de habitação, não incluindo medidas específicas para os territórios informais e bairros autoconstruídos, onde a vulnerabilidade residencial grassa.
No âmbito da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), e tendo em conta o objeto do presente manual e a problemática em apreço, existem dois programas que deviam ter sido já acionados de forma a mitigar as carências graves habitacionais que se registam em muitos territórios informais: O Porta de Entrada e o 1º Direito.
O Porta de Entrada aplica-se às situações de necessidade de alojamento urgente de pessoas que se vejam privadas, de forma temporária ou definitiva, da habitação ou do local onde mantinham a sua residência permanente ou que estejam em risco iminente de ficar nessa situação, em resultado de acontecimento imprevisível ou excecional. Para benefício de apoio ao abrigo do Porta de Entrada, basta que a pessoa ou o agregado: esteja numa situação de necessidade de alojamento urgente; não disponha de alternativa habitacional adequada; e esteja em situação de indisponibilidade financeira imediata.
O 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, visa apoiar a promoção de soluções habitacionais para pessoas que vivem em condições habitacionais indignas e que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada no mercado livre. O Programa assenta numa dinâmica promocional predominantemente dirigida à reabilitação do edificado e ao arrendamento. Aposta também em abordagens integradas e participativas que promovam a inclusão social e territorial, mediante a cooperação entre políticas e organismos setoriais, entre as administrações central, regional e local e entre os setores público, privado e cooperativo.
Em ambos os casos, cabe aos municípios a responsabilidade de levantamento das necessidades existentes nos seus territórios e de comunicação ao IHRU que avaliará a informação e procederá à celebração dos protocolos necessários, bem como centralizará a gestão dos processos, sem prejuízo da necessária coordenação com outras entidades com quem celebre protocolos de cooperação institucional. Estes dois programas, integrados no lançamento da iniciativa NGPH, antecâmara da discussão da Lei de Bases da Habitação em Portugal, representam um momento discursivo governamental inovador na tentativa de resolução dos problemas estruturais que se têm colocado ao avanço do Direito à Habitação no nosso país. Especificamente a NGPH, surgindo num contexto de pós-crise capitalista, corresponde a um pacote programático que abarca diferentes situações e respostas habitacionais muito diversas. Revela um discurso assertivo, estratégico e pró-activo, e uma visão holística, integradora e intersectorial, no que toca ao lançamento de uma Política Pública de Habitação visando a resolução de carências e problemas estruturais no sector que se arrastam há séculos no território português. Esta NGPH assume no seu discurso teórico, visão e missão, os grandes objetivos de garantir o acesso de Todos a uma habitação adequada, entendida no sentido amplo de habitat e orientada para as pessoas, o que pressupõe um alargamento significativo do âmbito de beneficiários e da dimensão do parque habitacional com apoio público. Contudo, dependentes da definição de uma Estratégia Local de Habitação, desprovidos de recursos humanos, técnicos e financeiros necessários à prossecução desta política e operacionalização destes programas, os municípios não têm agilizado os procedimentos necessários para o acionar destes instrumentos, não contribuindo para a efetivação do direito à habitação, tal como consagrado na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases da Habitação.
De forma a ultrapassar a inoperância e morosidade administrativa daqueles dois programas, surge em complemento, ainda este ano e em contexto de pandemia, o Programa Bairros Saudáveis. Este é um programa público, de natureza participativa, para melhoria das condições de saúde, bem-estar e qualidade de vida em territórios vulneráveis. É um programa pontual e “cirúrgico”, de pequenas intervenções, através do apoio a projetos apresentados por associações, coletividades, organizações não-governamentais, movimentos cívicos e organizações de moradores, em articulação com as autarquias, as autoridades de saúde ou demais entidades públicas. Visa sobretudo dar algum poder, no sentido de “poder fazer”, a comunidades residentes, seus atores e agentes, ou organizações intervenientes em territórios vulneráveis. Apesar de uma dotação orçamental reduzida, e embora não tenha a pretensão da resolução da totalidade das carências habitacionais, este programa abraça uma lógica empreendedora e de inovação socio-espacial que escapa à lógica assistencialista que outros programas têm assumido na história da Política Pública de Habitação, já que promove as comunidades de bairro como agentes de saúde pública, potenciando iniciativas de desenvolvimento local e de capacitação e assessoria técnica das comunidades locais, fornecendo apoio material e institucional à auto-organização da população e à sua participação na melhoria das respetivas condições de vida e dos determinantes em saúde. Através do financiamento, viabiliza intervenções mais significativas e efetivas, porque céleres e eficazes, autodeterminadas e autogeridas pelas comunidades, tornando-as lugares mais resilientes, inclusivos e saudáveis, pois mobiliza capital social, espacial e humano, a cidadania ativa e as redes locais de apoio.
O artigo 65º da Constituição da República atribui ao Estado a competência para a resolução dos problemas da habitação promovendo, para isso, políticas públicas adequadas. Do nosso ponto de vista, e face ao texto constitucional, ao Estado incumbe intervir, inclusive, como regulador, promotor, provisor direto e como proprietário, em todos os níveis da criação de solo urbano, da reabilitação do edificado e da oferta de habitação especialmente para os grupos mais vulneráveis. Para tanto, o Orçamento do Estado tem de anualmente consignar as dotações suficientes para assegurar o financiamento adequado para acorrer às necessidades, quer de conservação e reabilitação de edificado existente, quer de construção nova. Ou seja, urgentemente terá de haver mais oferta pública de habitação para atender sobretudo aos grupos mais vulneráveis e em risco social, mas também para contribuir para a regulação do mercado, com mais oferta e menor custo, promovendo o efetivo direito à habitação como fator de justiça social e espacial.
* Reprodução do texto desenvolvido no âmbito do projecto “Como ficar em casa?” Vide https://comoficaremcasa.pt/ Gender Research 4 COVID19 – Como ficar em casa? Intervenções imediatas de combate à Covid-19 em bairros precários da AML (Ref. 620033573), coordenado pela Doutora Joana Pestana Lages e Doutora Sílvia Jorge. Entidade promotora: Fundação para a Ciência e Tecnologia. Entidade executora: ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (DINÂMIA-CET-ISCTE).