Descobrir novas formas de circulação na cidade e devolver o espaço público às crianças
Descobrir novas formas de circulação na cidade e devolver o espaço público às crianças
Sigapé pela Saúde

Autocarros Humanos

Crianças conquistam espaço público e, em comunidade, criam o seu sistema de transporte saudável e gratuito

As crianças têm vindo a ser empurradas para “redomas”, com a desculpa de que estes são os lugares seguros para viver, brincar, circular. Impediu-se a liberdade no espaço público privilegiando a circulação automóvel. Como se reconquista a cidade que também é das crianças?

O projeto SigAPÉ chega a Tavira por se sentir que ao longo dos tempos os carros foram tomando conta das ruas da cidade. O crescimento na periferia passou a trazer cada vez mais pais e mães, pela manhã, até à porta dos estabelecimentos de ensino e o trânsito nestes pontos de encontro, que são as escolas, gera cada vez mais conflitos de mobilidade sendo as crianças, os elementos mais vulneráveis, preteridas, cada vez mais restringidas, fechadas em redomas ditas seguras, como as casas, os parques vedados, os carros, onde a sua liberdade e desenvolvimento são comprometidos.

Procurando compreender melhor a realidade da cidade, o SigAPÉ aplicou um questionário aos encarregados de educação das crianças da Escola Horta do Carmo e, assim, a perceção empírica foi confirmada. É um facto que muitas crianças chegam à escola vindas de longe e a grande maioria (cerca de 70%) de carro. Muitos adultos identificam a Estrada Nacional 125 como o local inseguro que levanta barreiras à deslocação autónoma das crianças para a escola.


Quando questionados sobre “Se pudesse escolher, sem qualquer impedimento, que modo de deslocação usaria?” entre as opções “a pé, de carro, de bicicleta ou de transporte público”, 66% respondeu a pé, seguindo-se 20% de bicicleta, depois 15% de transportes públicos e por último, com apenas 9% dos votos, de automóvel.

Refletindo sobre esta vontade de andar mais a pé e de bicicleta, que contraria a prática instituída, implementaram-se duas rotas que partiam de dois bairros periféricos em direção à Escola Horta do Carmo. Segundas e quartas-feiras a rota realizava-se a pé e às sextas-feiras de bicicleta.

No decorrer desta prática de "Autocarro Humano", em que crianças e adultos faziam, com regularidade, os mesmos trajetos e identificavam problemas, também se assinalavam fragilidades junto do parceiro Câmara Municipal para que as mesmas pudessem ser corrigidas. Vimos “nascer”, por exemplo, uma passadeira numa das passagens junto à EN125.

E porque as mudanças requerem resiliência, fomos realizando mais algumas atividades com crianças e famílias para promover a mudança de hábitos, para assinalar a existência de outras opções de mobilidade e também para que uma tomada de consciência para o problema, tivesse lugar.


A predisposição dos adultos para a mudança é sempre limitada, como nos indicam os dados do estudo, em que 53% respondeu negativamente à questão “Se se desloca de carro, está disposto a mudar a maneira de deslocação para a escola?”, mesmo sabendo que a vontade de ir de carro é apenas de 9%.


Esta resistência passa muitas vezes pelo desconhecimento de outras formas de resposta à mobilidade ativa. Assim foram:
- Promovidas caminhadas acompanhadas para que as famílias pudessem testar a rota.
- Realizadas conversas online para apresentar e discutir, com a população, a prática do autocarro Humano.
- Divulgadas diversas vezes, na rádio local (Rádio Gilão) a existência e o propósito do SigAPÉ em Tavira.

Mas mais do que sensibilizar, o SigAPÉ quer crianças em ação, pelos seus direitos. Mudar hábitos implica tomar consciência e agir. Assim, o projeto chegou à escola e envolveu as turmas dos 3º e 4º anos em estudos de observação, em que todas elas passaram por uma aula de partilha de conhecimentos sobre a mobilidade ativa e o lugar da criança na cidade. Depois, os pequenos inspetores foram aplicar uma ferramenta de observação, o Índice de Pedonalidade, que os levou a pensar sobre a qualidade das ruas envolventes à escola, sobre os entraves à mobilidade ativa e sobre a criação de um conjunto de propostas de mudança para devolver a cidade às crianças.

Para passarem das ideias às ações, as turmas do 4º ano realizaram uma campanha de sensibilização que pretendia reivindicar uma mudança concreta. Como a implementação da campanha coincidiu com uma tradição ancestral da região as crianças uniram esforços e, com o apoio de um outro projeto local para seniores, criaram 4 Maios (espantalhos que são colocados na rua com uma mensagem de crítica social), que foram espalhados pela cidade. Uma das turmas teve inclusive a oportunidade de ser recebida pela presidente da Câmara Municipal que, com muito carinho, acolheu as ideias apresentadas.

Uma das mudanças reclamadas pelas crianças passa por solucionar o excesso de carros à porta da escola e, para tal, uma das soluções apontadas passa pelo corte da estrada e impedir o acesso dos carros. Concretizámos essa medida todas as 6 as feiras de junho, onde não só os carros estavam impedidos de entrar na rua da escola, como era disponibilizado um conjunto de materiais soltos, como cordas suspensas em árvores, panos elásticos para deitar, pneus, carrinhos de rolamento, entre outros, que incentivavam crianças e famílias a permanecer mais algum tempo no espaço e a usufruir das brincadeiras e do convívio entre colegas e pais. Foi assim que se encerrou o ano letivo: a reconquistar espaço aos carros, devolvendo-o às crianças e criando envolventes escolares mais seguras e prazeirosas, proporcionando vivências marcantes e incisivas numa idade que se constitui como janela de oportunidade no desenvolvimento da criança.

Muito, ainda, há por fazer:
- É preciso encher os autocarros humanos de crianças, criar ainda mais segurança nestas rotas para as escolas e incentivar o seu uso de forma mais autónoma, livre e segura.
- É preciso cuidar mais das envolventes escolares, para que os carros não invadam, de forma perigosa, o espaço das crianças.
- É preciso persistir na mudança. A APSI – Associação para a Promoção da Segurança Infantil acredita que é na criação de ambientes seguros e estimulantes que se garante uma vivência e um crescimento saudável da criança, na sua comunidade. A Associação Rotinas Selvagens também tem empreendido nesse sentido, através de um coletivo de pessoas implicadas no sistema de saúde em Tavira, que acredita que é na prevenção e na criação de hábitos de vida saudáveis, que se deve apostar.

Regressaremos em setembro, com o arranque do novo ano letivo, cheios de energia para persistir rumo à mudança.